Resumo
O artigo apresenta a crítica de Ulrich Beck ao nacionalismo metodológico. Com este conceito, o autor define e critica as categorías cognitivas e políticas com as quais se construiu toda a sociología da desigualdade ao longo do século XX. A partir desta crítica, é possível urna rearticulaçâo teórica e empírica dos conceitos de desigualdade, trabalho e classe social. Esta perspectiva permite rever a força política dos Estados nacionais na atual fase de capitalismo globalizado, bem como repensar os caminhos de urna possível sociología que tematize a reproduçâo global da desigualdade social.
Palavras-chave: Nacionalismo metodológico. Desigualdade. Trabalho. Classes sociais.
Este artigo apresenta urna discussáo teórica a partir da leitura de alguns livros de Ulrich Beck, sociólogo alemáo contemporáneo, conhecido principalmente por sua teoria da "sociedade do risco" (BECK, 1986). Buscamos recuperar, a partir de sua obra mais recente, a perspectiva de que urna teoria contemporánea sobre a desigualdade, o trabalho e as classes sociais nao pode mais se restringir aos marcos cognitivos e epistemológicos do "nacionalismo metodológico" (BECK, 2002, 2008). Com este conceito, o autor define o paradigma, dominante no século XX, sobre o quai se assentou o status político e socioeconómico das sociedades ditas industriáis (BECK, 2008, p. 18). Esta reduçao metodológica, nao percebida pela ciencia social dominante, estabeleceu arbitrariamente urna ligaçao entre nacionalidade e territorialidade que precede a posiçao social de individuos e grupos.
O nacionalismo metodológico é definido pelo autor também como urna dupla medida de congruéncia: de um lado, a congruéncia entre fronteiras territoriais, políticas, económicas, sociais e culturáis; de outro, a congruéncia entre a perspectiva dos atores e a perspectiva de observaçao da ciéncia social (BECK, 2008, p. 19). Dito de outro modo, o nacionalismo metodológico é a percepçao da desigualdade social como urna questáo estritamente nacional, o que ignora suas formas globais de produçao e reproduçao. A fraqueza teórica desta perspectiva consiste em reduzir a conformaçao das desigualdades sociais de toda natureza (entre classes, grupos, individuos, géneros, regióes, etc.) ao ámbito das sociedades nacionais. Este movimento teórico e político, com seu enfoque exclusivo nos Estados nacionais como objeto de estudo, torna opacas na análise as forças supranacionais que conformam as desigualdades sociais. Nesta perspectiva, Ulrich Beck procura criticar os limites cognitivos, políticos, teóricos e empíricos de toda a sociología da desigualdade dominante durante o século XX.
Urna teoria sobre o trabalho, por exemplo, nao deixa de ser urna teoria sobre a desigualdade. Também pode ser urna contribuiçao decisiva para urna nova teoria gérai de classes. Os très temas na verdade so se separam devido à alocaçao dos campos de poder e das áreas de pesquisa específicas dentro do sistema académico. Pierre Bourdieu (2001) também percebia, semelhante a Ulrich Beck (1986), a fragmentaçao do conhecimento académico como um dos principáis empecilhos a urna compreensáo abrangente dos fenómenos sociais. Um dos principáis motivos que fazem de Ulrich Beck merecedor de atençâo em sua obra é que, em alguma medida, aínda que de forma esparsa ao longo de livros diferentes, ele procurou refletir sobre as principáis mudanças sociais no mundo contemporáneo debatendo corn os très temas: o trabalho, a classe e a desigualdade. Sua crítica ao nacionalismo metodológico, dirigida mais específicamente ao campo específico em torno da sociología da desigualdade, também pressupóe urna nova agenda de pesquisa para os temas do trabalho e da classe com perspectivas novas e nao mais restritas às dimensóes institucionais, políticas e económicas dos Estados nacionais.
Desde seu primeiro livro de grande influéncia, Risikogesellschaft (Sociedade de risco) (1986), Ulrich Beck vem criticando os padróes específicos da análise de classe com o desenvolvimento da ideia de um individualismo radicalizado, no período contemporáneo do capitalismo que ele designa como "modernidade reflexiva" e "segunda modernidade" (BECK, 1986). A modernidade reflexiva, para ele, é um conceito que se remete à atualidade do capitalismo globalizado, marcado por um desdobramento tecnológico e científico que subjugou a natureza até o seu limite. Corn este conceito, o autor procura caracterizar urna singularidade da sociedade mundial contemporánea, qual seja, o fato de que existe hoje em todo o mundo urna consciéncia generalizada acerca da sociedade global de risco na qual vivemos (BECK, 1986).
Este é um ponto fundamental que diferencia a atual fase do capitalismo, a segunda modernidade, sinónimo de modernidade reflexiva, da sua fase anterior, que ele e muitos outros autores definem como "sociedade industrial" (BECK, 1986). A sociedade industrial foi marcada fundamentalmente pela produçâo de necessidades. A modernidade reflexiva é marcada principalmente pela produçâo de riscos, devido ao desdobramento sem limites do racionalismo de dominaçâo da natureza, analisado por Max Weber. Por isso, ele define o mundo contemporáneo como "sociedade de risco", tanto no aspecto natural quanto no social (BECK, 1986).
A crítica ao nacionalismo metodológico deve ser situada dentro deste panorama geral da obra de Ulrich Beck, pois tudo o que ele produziu desde seu Risikogesellschaft (1986) é desdobramento da ideia de sociedade de risco, e que hoje ele intitula já como sociedade mundial de risco (BECK, 1995). Tal tese náo nega o dado evidente da produçâo de necessidades e de desigualdades no capitalismo. Pelo contrário, procura ir além. A produçâo de necessidades e de desigualdades continua, porém atrelada e subjugada à produçâo de risco. A produçâo de necessidades durante o período industrial sempre foi produçâo de risco, porém risco mais para os necessitados. Hoje a produçâo de risco é global e ameaça também a Europa, berço do Welfare State, concepçâo esta compartilhada pelo proprio Ulrich Beck e por vários dos autores europeus contemporáneos que se preocuparam com o tema da precarizaçâo do trabalho na Europa. A produçâo de riscos sociais em países como a Alemanha evidencia que o estado de bem-estar social, no sentido da empregabilidade e seguridade social para a maioria da populaçâo, nâo é mais o mesmo de très décadas atrás (BECK, 2007). A chegada do trabalho informal e da precariedade como situaçâo individual cada vez mais previsível e possível para urna parcela cada vez maior da populaçâo destes países, considerados até entáo como centro e modelo do capitalismo, tornou questionável a até entáo inquestionável situaçâo de bem-estar social.
A questáo do trabalho foi enfrentada por Ulrich Beck desde o Risikogesellschaft. Ele dedicou neste livro um capítulo as alteraçoes estruturais na atividade de trabalho remunerado na Alemanha. Posteriormente, em livro intitulado Schöne neue Arbeitswelt (Admirável novo mundo do trabalho) (BECK, 2007), a questáo foi desenvolvida a partir da provocante tese da "brasilizaçâo do Ocidente". O ponto de partida fundamental é a constataçâo da chegada massiva do trabalho informal e precário na Europa e especialmente na Alemanha. Como outros intelectuais do centro do poder académico, a questáo inquietante passa a ser sobre o que está acontecendo no centro do capitalismo mundial, ou seja, surge urna questáo social nova no até entáo tradicional centro da produçâo mundial do capitalismo.
A tese é inquietante e se apresenta como um bom ponto de partida para qualquer discussáo que busque desenvolver urna nova teoria contemporánea do trabalho. A virtude inicial desta tese é trazer a periferia para o debate. A brasilizaçâo do Ocidente significa a chegada do trabalho informal e precário na Europa. Desde o momento em que o fenómeno social novo da precariedade se torna visível na Europa e se torna tema sistemático dos intelectuais europeus, ele naturalmente deixa de ser tema e preocupaçâo específica apenas de intelectuais da periferia que tradicionalmente sempre precisaram se preocupar corn suas desigualdades internas.
A constataçâo da precariedade e do trabalho informal foi um passo decisivo do autor no desenvolvimento da crítica ao nacionalismo metodológico, pois esta se direciona principalmente a sociología da desigualdade dominante, corn suas categorías cognitivas e dados estatísticos nacionais, dentre os quais o trabalho sempre foi um tema central. Ulrich Beck náo trata estes temas de forma sistemática e articulada, ainda que possamos perceber aqui sua relaçâo. A crítica ao tema específico da sociología da desigualdade é desenvolvida especialmente no livro Die Neuvermessung der Ungleichheit unter den Menschen (A nova medida de desigualdade entre as pessoas) (BECK, 2008). E nele que se desenvolve mais precisamente a crítica ao nacionalismo metodológico. Ela é um passo decisivo para urna nova teoria mundial sobre o trabalho, que considere a nova sociedade do trabalho como um fenómeno mundial contemporáneo de características consideravelmente novas na historia do capitalismo.
O tema da desigualdade é epistemológicamente mais ampio do que o tema do trabalho e o tema das classes sociais. Toda sociologia do trabalho dominante durante todo o sáculo XX náo constatou outra coisa senáo a desigualdade. Com a sociologia das classes sociais, seja quai for o método ou orientaçâo ideológica em jogo, náo foi diferente. A constataçâo da desigualdade de classes no capitalismo é pilar de qualquer sociologia crítica. A busca de contribuiçâo a urna nova teoria do trabalho, mundial, para além dos marcos do nacionalismo metodológico, significa indiretamente a busca de contribuiçâo a urna nova teoria da desigualdade social contemporánea. Náo por acaso Ulrich Beck identifica a sociologia da desigualdade como o principal alvo da crítica do nacionalismo metodológico. Por este motivo, recuperaremos agora seu argumento no livro Die Neuvermessung der Ungleichheit unter den Menschen (2008), no quai ele sistematiza a crítica à sociologia da desigualdade dominante no século XX.
I. A desigualdade para além dos Estados nacionais
O ponto de partida de sua reconstruçao é a revisáo da própria ideia fundamental de desigualdade. Se as pessoas sáo naturalmente iguais, entáo a desigualdade é algo mutável, ou seja, os privilegiados de hoje podem ser os prejudicados de amanhá. Em sentido político, toda desigualdade é em principio mutável, inclusive através do direito. Todas as pessoas sáo iguais, em principio, mas a igualdade náo existe, por exemplo, em dados contextos sociais, para negros, judeus ou mulheres, dentre outros, e ela termina, sobretudo, se configurando nas fronteiras dos Estados nacionais (BECK, 2008, p. 8).
Existe urna nítida separaçâo entre sociedade e natureza, a partir da qual Ulrich Beck procura a reconstruçâo da diferença entre desigualdades sociais e desigualdades naturais. No final do século XX e inicio do século XXI, presenciamos urna mudança de época marcada por urna interessante especificidade, conforme o pensamento de Ulrich Beck. De acordo com sua tese da modernizaçâo reflexiva, o que ele denomina também como segunda modernidade, este é o momento no quai a ordern social mundial começa a se tornar objeto da consciencia pública (BECK, 2008, p. 9). Esta constataçâo é significativa para urna nova teoria que articule desigualdade, trabalho e classe, náo restrita aos marcos do nacionalismo metodológico. Ela pode ser confirmada náo apenas no pensamento do autor, mas também se observarmos o tema na mídia e esfera pública contemporánea. Todos os grandes jomáis e revistas da atualidade possuem, por exemplo, urna seçào chamada "Mundo". Nestas seçoes, sáo cada vez mais frequentes as matérias sobre questóes sociais relacionadas aos temas da "globalizaçâo" e do "mundo sem fronteiras", ou seja, de urna nova ordern social, e urna nova ordern social que é global. O dado empírico fundamental que se apresenta é que, antes mesmo da constataçao científica, a própria consciencia pública, o próprio imaginário social, apresenta urna dimensáo nova e inevitável, fora da quai se torna cada vez mais inimaginável a tematizaçâo das questóes sociais contemporáneas: trata-se da dimensáo global da reproduçâo social contemporánea. Esta é urna das características fundamentáis da "segunda modernidade" de Ulrich Beck.
A nova percepçào da desigualdade na dimensáo global é um aspecto fondamental da crítica ao nacionalismo metodológico. Beck procura argumentar acerca da necessidade de se repensar os marcos metodológicos e cognitivos da desigualdade também a partir de urna nova percepçào da igualdade social na consciencia pública global. Para ele, a igualdade social se torna hoje urna expectativa global. A tese central neste ponto é a seguinte:
Zum Problem, zum Konfliktstoff werden soziale Ungleichheiten nicht, weil die Reichen immer reicher und die Armen immer ärmer werden, sondern dann und nur dann, wenn sich anerkannte Qleichheitsnormen und Qleichheitserwartungen - Menchenrechte - ausbreiten. Wer die politische Wirksamkeit sozialer Ungleichheiten verstehen will, muss nach der Qeschichte der sozialen Qleichheit fragen. (As desigualdades sociais näo se tornam problema, ou seja, tema de conflito, porque os ricos se tornam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, mas apenas quando as normas de igualdade reconhecidas e as expectativas de igualdade - direitos humanos - se ampliam. Quem deseja entender a realidade política da desigualdade social precisa se perguntar sobre a historia da igualdade social). (BECK, 2008, p. 11, traduçào nossa).
A crítica ao nacionalismo metodológico pressupóe que todas as pessoas sáo ao mesmo tempo iguais e designáis dentro da circunscriçâo das fronteiras nacionais. Para Beck (2008, p. 11), as fronteiras nacionais se realizam como um "divisor de águas da percepçâo": elas politizam as desigualdades sociais para dentro e ao mesmo tempo as produzem, estabilizan! e legitimam para fora. Urna teoria contemporánea da desigualdade, do trabalho e das classes, que procure estabelecer os novos fundamentos, as novas formas de reproduçâo, ou seja, o que há de novo no capitalismo contemporáneo, que procure compreende-lo como um fenómeno social global, náo pode desconsiderar esta operaçâo bifronte das fronteiras nacionais.
Conforme mostra Beck (1997) em outro livro Was ist Globalisierung.P, os Estados e as fronteiras nacionais contemporáneos passam por um processo constante e irreversível de derrocada diante do sistema económico mundial. Os agentes financeiros internado nais e a dominaçao financeira sem limites do mercado nao mais se restringem ou coincidem com Estados nacionais específicos, nao necessariamente, ainda que provavelmente, o que exigiría estudo empírico para constataçao, estes agentes se encontrem em maioria no Atlántico Norte. Urna nova teoria mundial da desigualdade, do trabalho e das classes precisa considerar que esta dominaçao radicaliza desigualdades históricamente produzidas na periferia do capitalismo e que os Estados nacionais, principalmente e principalmente os ainda periféricos, continuam sendo urna poderosa instituiçao cuja açao contra as desigualdades é tanto possível quanto necessária.
A operaçâo bifronte, ambivalente, das fronteiras nacionais, levanta a questáo fundamental da nova configuraçao entre centro e periferia no capitalismo contemporáneo. A crítica ao nacionalismo metodológico permite urna nova tematizaçao da dicotomia centro-periferia. A dominaçao financeira internacional náo necessariamente coincide mais com a dominaçâo de alguns países sobre outros. A ambivalencia da nova ordern mundial, entretanto, significa que o produto diferencial, as realizaçoes diferenciáis do capitalismo durante o século XX ainda podem ser vistos nítidamente, como, por exemplo, nos dados do proprio Ulrich Beck:
Die Ungleichheit zwischen Armen und Reichen in der Weltgesellschaft nimmt die Form eines Champagnerglases an. Auf die 900 Millionen Menschen, privilegiert durch die Qnade der westlichen Qeburt, entfallen 86 Prozent des Weltkonsums, sie verbrauchen 58 Prozent der Weltenergie und verfügen über 79 Prozent des Welteinkommens sowie 74 Prozent aller Telefonverbindungen. Auf das ärmste Fünftel, 1,2 Milliarden der Weltbevölkerung, entfallen 1,3 Prozent des globalen Konsums, 4 Prozent der Energie und 1,5 Prozent aller Telefonverbindungen. (A desigualdade entre pobres e ricos na sociedade mundial assume a forma de urna taça de champagne. As 900 milhöes de pessoas privilegiadas pela graça do nascimento ocidental, correspondem 86% do consumo mundial. 58% da energía mundial e 79% dos ganhos e rendimentos mundiais, bem como 74% de todas as ligaçôes telefónicas. Ao um quinto mais pobre, 1,2 bilhäo da populaçâo mundial, correspondem 1,3% do consumo global, 4% da energía e 1,5% das ligaçôes telefónicas). (BECK, 2008, p. 12, traduçâo nossa).
Os dados sao fundamentáis no argumento do autor, que a partir deles retoma a questáo da legitimaçao da desigualdade, como pensada por Max Weber. Como pode ser possível que os pobres dominados aceitem esta situaçào? Qual é o pensamento legitimador que garante a aceitaçao da pobreza global e da exclusáo operados pela desigualdade da sociedade mundial, na qual metade da populaçao - a maioria crianças - passa fome? (BECK, 2008, p. 12). O que faz esta ordenaçâo da desigualdade global legítima e estável? Como é possível que as sociedades europeias ricas organizan seus próprios operosos e dispendiosos sistemas de transferencia e manutençao de riqueza em cima da pobreza nacional de outros, enquanto urna grande parte da populaçao mundial diariamente é ameaçada pela fome?
A resposta de Ulrich Beck é incisiva: "O principio do mérito (Leistungsprinzip) legitima a desigualdade nacional enquanto que o principio do Estado nacional (nationalstaatsprinzip) legitima a desigualdade global' (BECK, 2008, p. 13). Como os dois principios se operam em suas funçoes específicas e de forma articulada? Em primeiro lugar, as fronteiras nacionais operam urna cisáo entre urna desigualdade politicamente relevante e urna desigualdade politicamente irrelevante. No Brasil, por exemplo, a desigualdade "racial" sempre foi mais relevante, no pensamento académico, do que a desigualdade de classe e a desigualdade de género. Pensando com Ulrich Beck, o Estado nacional brasileiro teria tido urna funçâo fundamental nesta operaçao, inclusive financiando pesquisas, urna vez que a integraçao nacional sempre dependeu do mito das très raças. A desigualdade de classe com isso permaneceu opaca, o que opera urna funçâo fundamental na manutençao da desigualdade social brasileira, na quai o principio do mérito se opera de forma radical, como mostra Souza (2003).
Muito menos a desigualdade de género é tematizada, pois devido à radical desigualdade de classe e de desempenho, muitas mulheres pobres no Brasil em grande medida ainda sáo forçadas a prestar serviços sexuais explícitos ou implícitos, bem como a casar com homens de classes ou fraçoes de classes superiores as suas, de modo a melhorar de vida. Estas situaçoes de classe e género, como no caso brasileiro, sáo escondidas ou distorcidas pelo nacionalismo metodológico, que em nosso caso favoreceu na ciéncia, até pouco tempo, o que talvez esteja agora entrando em mudança, os estudos raciais em detrimento dos estudos de classe e género. No Brasil, a questáo racial foi, durante todo o século XX, fundida à questáo nacional - daí a força do "pensamento social brasileiro" - a principal questáo social, ou seja, como diria Beck (2008), a "desigualdade politicamente relevante".
Continuando com o argumento do autor, o olhar nacional "se livra" do olhar sobre a pobreza do mundo. Ele com isso opera urna dupla exclusáo: ele exclui os excluidos. Este é o pensamento operado pela sociologia da desigualdade, se ela considerar desigualdade como sinónimo de desigualdade nacional, irrefletidamente. Ulrich Beck nos permite pensar, por exemplo, que o olhar nacional exclui os excluidos quando ele náo enxerga que a atual produçâo e reproduçâo da desigualdade mundial se opera na dimensáo da dominaçâo financeira internacional, cujo um dos principáis efeitos é o aumento da precarizaçâo do trabalho e consequentemente das condiçoes de vida para grande parte da populaçâo na periferia. Aqui a dupla exclusáo, eu diria, significa urna "precarizaçâo conjuntural", operada pela lógica específica do sistema económico financeiro mundial na periferia, que radicaliza a já existente "precarizaçâo estrutural" histórica dos países periféricos. A articulaçâo dos dois fenómenos é um dos principáis passos de urna busca por urna nova teoria mundial do trabalho, que tematize as reais desigualdades da nova sociedade do trabalho mundial. Também significa realizar urna teoria do trabalho para além dos marcos institucionais e cognitivos do nacionalismo metodológico.
Em segundo lugar: por náo existir urna competencia estatal global e urna correspondente instancia de observaçâo as desigualdades globais se fragmentant, metafóricamente, em cerca de "200 ilhas de desigualdades nacionais" (BECK, 2008). Isso conduz Ulrich Beck a um terceiro principio, com o quai é possível pensar as desigualdades entre países, regiöes e Estados como politicamente incomparáveis. No gérai, o paradoxo reside naquilo que o olhar nacional mais bloqueia: "Quanto mais as normas de igualdade se espalham mundialmente, mais se desata o fundamento da legitimaçâo do olhar institucionalizado das desigualdades globais" (BECK, 2008, p. 15).
Para a crítica ao nacionalismo metodológico, a desigualdade social náo pode mais ser demarcada no espaço nacional-estatal. Assim descreve o autor a tese central neste ponto:
Die Wahrnehmung sozialer Ungleichheit in Alltag, Politik und Wissenschaft beruht auf einem Welt bild, das territorial, politische ökonomische, gesellschaftliche und kulturelle Qrenzen in eins setzt. Tatsächlich aber wird die Welt immer vernetzter. Territoriale, Staatliche, ökonomische, gesellschaftliche und kulturelle Qrenzen bestehen zwar weiterhin, aber sie koexistieren nicht mehr! Diese empirisch gut belegte Zunahme Von Verflechtungen und Interaktionen über nationale Qrenzen hinweg erzwingt die Neuvermessung sozialer Ungleichheit. (A percepçâo da desigualdade social no cotidiano, na política e na ciéncia descansa sobre um quadro mundial, no quai se colocam as fronteiras territoriais, políticas, económicas e culturáis. Apesar disso, na prática, porém, o mundo se toma sempre conectado. Fronteiras territoriais, estatais, económicas, sociais e culturáis continuam a existir, mas elas nâo coexistem mais! Esta boa e comprovada medida empírica de interpenetraçâo e interaçâo para além das fronteiras nacionais é o que força urna nova medida da desigualdade social). (BECK, 2008, p. 16, traduçâo nossa).
Este trecho explicita bem em qual dimensáo imaginária e empírica a teoría da desigualdade social deve ser colocada. Para ele, o quadro mundial da desigualdade social descansa sobre o principio da nacionalidade e sobre a condiçâo estatal. Este raciocinio conduz Ulrich Beck a se perguntar sobre questóes de "primeira ordern" e questóes de "segunda ordern", entre as quais o pensamento crítico deve se decidir. As questóes de primeira ordern ( Was-Fragen) tematizam o que é desigual na desigualdade social. As questóes de segunda ordern ( Wer-Fragen) tematizam quem é desigual. As questóes de primeira ordern se ocupam do compartilhamento material de chances e obrigaçoes, recursos e riscos, bem como salário, formaçâo, posse, etc. Elas pressupóem a resposta sobre questóes de segunda ordern náo levantadas, ou seja: quem é desigual? Qual unidade antecede as desigualdades sociais? Quai é o espaço medido, no quai as questóes de primeira ordern sáo levantadas para entáo poderem ser respondidas política e sociológicamente?
Trata-se aqui da congruéncia entre Status político (comunidade nacional, passaporte) e Status socioeconómico (posiçâo na hierarquia da desigualdade nacional-estatal) que implícitamente até hoje permanece pressuposto na análise da desigualdade. Este paradigma, que náo refletidamente sustenta em urna só unidade analítica os Status político e socioeconómico, é o que Ulrich Beck denomina como "nacionalismo metodológico" (BECK, 2008, p. 18). O olhar da ciéncia social, quando restrito pelo nacionalismo metodológico, náo pode ver que a ligaçâo entre nacionalidade e territorialidade processa a posiçâo social de individuos e grupos em um parámetro mundial e esta é propriamente a dimensáo da desigualdade. O nacionalismo metodológico descansa sobre urna dupla medida de congruéncia: de um lado a congruéncia entre fronteiras territoriais, políticas, económicas, sociais e culturáis; de outro, a congruéncia entre a perspectiva dos atores e a perspectiva de observaçâo da ciéncia social. Para Ulrich Beck, entretanto, o recorte histórico caminha exatamente na direçao contrária: fronteiras territoriais, estatais, económicas e sociais existem, mas nao coexistem mais (BECK, 2008, p. 19).
2, Conclusäo
Deste modo, a necessária mudança de perspectiva, a partir dos argumentos expostos, pode ser construida, para Ulrich Beck, sobre très pontos de vista: (1) as classes sociais sao apenas urna das formas históricas de desigualdade; (2) o Estado nacional é apenas um dos espaços históricos de significado; (3) o fim da sociedade de classes nacional nao significa o fim da desigualdade social. Estes tres aspectos da mudança social contemporánea levam Ulrich Beck a perceber que nos vivemos hoje a emancipaçao dos interesses económicos em relaçâo aos laços nacionais e suas instituiçoes de controle. Isso significa a separaçâo entre dominaçao e política (BECK, 2008, p. 20). Em correspondencia, a dominaçao se torna reproduzida em poderes difusos, como no cyberspace e em mercados e capitais movéis, enquanto que por outro lado repousa sobre individuos fragilizados, que passant a ter que lidar sozinhos com os crescentes riscos sociais. Este seria o principal efeito negativo, para Beck, da mudança social marcada pelo mundo globalizado, na quai a dominaçao económica se torna irreversível pela política tradicional das instituiçoes dos Estados nacionais. Em outras palavras, a nova sociedade mundial é marcada predominantemente por urna dominaçâo e urna desigualdade radicalizada por formas de reproduçao supranacionais.
Outra pergunta fundamental levantada por Ulrich Beck e produtiva para urna teoria contemporánea da desigualdade, do trabalho e da classe é a seguinte: onde e através de que se tornam determinadas - em um mundo no quai as fronteiras nacionais, pelo menos para o capital e as informaçoes, se tornam ultrapassadas e vencidas - as posiçoes no sistema da desigualdade social? A precarizaçao sem precedentes do novo mundo do trabalho é urna das respostas a esta pergunta. Para ele, porém, um dos importantes fatores de influencia neste aspecto, decisivo para a definiçao das posiçoes na hierarquia da desigualdade na era global, sáo as possibilidades ou chances de interaçao e mobilidade para além das fronteiras nacionais. A este escopo pertencem fatores de toda natureza, como passaportes, títulos de formaçao, lingua e dinheiro, ou seja, capitais culturáis, sociais e económicos. Quem e por que possui tais capitais, bem como a possível nova relaçâo entre eles, é um dos pontos a serem perseguidos por urna nova teoría da desigualdade, do trabalho e da classe. A tese da sociedade do conhecimento, por exemplo, urna das pretendentes a substituir a ideia de sociedade do trabalho, sugere que o capital cultural se torna cada vez mais poderoso diante do económico. A perspectiva de que vivemos, porém, em urna dominaçâo financeira sem precedentes sugere outra direçao para a nova sociedade mundial.
De um lado, Beck identifica como fenómenos empíricos da nova sociedade mundial alguns atores que ele define como "transnacionalizadores ativos" (BECK, 2008): urna elite global, urna grande parte das geraçôes jovens e os imigrantes. De outro lado, ele vê urna nova tensáo no crescente meio social mundial, ou seja, as classes médias, nos quais a transnacionalizaçao opera um processo de passividade: estes se tornam ameaçados em seus padroes de vida e passam a vindicar a defesa do Estado. Neste aspecto, Ulrich Beck parece ver apenas urna realidade europeia, problema este que pode se encontrar ao longo de toda a obra do autor, ainda que tematize questóes fundamentáis sobre a nova ordern mundial.
De todo modo, a contribuiçao teórica de Ulrich Beck é incisiva para se repensar, em sua totalidade, a nova realidade empírica global, bem como seus correspondentes conceitos de desigualdade, trabalho e classe social, em urna perspectiva renovada, sem desconsiderar as contribuiçoes deixadas pelo pensamento crítico referente à dita era da sociedade industrial, ou seja, a "primeira modernidade" de Ulrich Beck (1986). Seu desdobramento histórico nos trouxe urna nova era global, diante da quai as categorias analíticas do nacionalismo metodológico parecem se tornar cada vez mais frágeis. Urna nova articulaçao entre os conceitos de desigualdade, trabalho e classe, a partir da crítica ao nacionalismo metodológico, auxiliada por pesquisas empíricas, pode assim se apresentar como um novo caminho para a compreensáo das mudanças sociais de nosso tempo.
Ulrich Beck and the criticism to the methodological nationalism
Abstract
The article presents the criticism of Ulrich Beck to the methodological nationalism. With this concept, the author defines and criticizes the cognitive and political categories, with which it was constructed the whole sociology of inequality throughout the twentieth century. From this criticism, it is possible a theoretical and empirical rearticulation of the concepts of inequality, work and social class. This perspective allows reviewing the political power of the National States in the current phase of global capitalism, as well as rethinking the paths of a possible sociology that can criticize the global reproduction of the social inequality.
Keywords: Methodological nationalism. Inequality. Work. Social classes.
Bibliografía básica
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Bibliografía consultada
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SOUZA, J. A construçao social da subcidadania. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: Iuperj, 2003.
Data de recebimento: 04.02.2013
Data de aprovaçâo: 28.08.2013
Fabrício Barbosa Maciel '
I Doutor em Ciéncias Sociais pela llniversidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com estadía de sanduíche de um ano na Pädagogische Hochschule de Freiburg (PH Freiburg), Alemanha, e professor adjunto do Mestrado profissional em Planejamento Regional e Qestäo de Cidades da llniversidade Cándido Mendes (UCAM), Campos dos Qoytacazes, Rio de Janeiro, Brasil £ autor de artigos publicados nas revistas: Perspectivas: Revista de Ciéncias Sociais (llniversidade Estadual Paulista - UN ESP, Araraquara), 2012: Política Democrática, 2012: Revista Espaço Académico (Universidade Estadual de Maringá - UEM), 2011, entre outras. E-mail: [email protected].
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Copyright Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciencias Humanas-CFH Sep-Dec 2013
Abstract
O artigo apresenta a crítica de Ulrich Beck ao nacionalismo metodológico. Com este conceito, o autor define e critica as categorías cognitivas e políticas com as quais se construiu toda a sociología da desigualdade ao longo do século XX. A partir desta crítica, é possível urna rearticulaçâo teórica e empírica dos conceitos de desigualdade, trabalho e classe social. Esta perspectiva permite rever a força política dos Estados nacionais na atual fase de capitalismo globalizado, bem como repensar os caminhos de urna possível sociología que tematize a reproduçâo global da desigualdade social.//The article presents the criticism of Ulrich Beck to the methodological nationalism. With this concept, the author defines and criticizes the cognitive and political categories, with which it was constructed the whole sociology of inequality throughout the twentieth century. From this criticism, it is possible a theoretical and empirical rearticulation of the concepts of inequality, work and social class. This perspective allows reviewing the political power of the National States in the current phase of global capitalism, as well as rethinking the paths of a possible sociology that can criticize the global reproduction of the social inequality.
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