Resumo: Este trabalho analisa, mediante revisăo da literatura, o papel social do bibliotecario e da biblioteca voltado ás pessoas trans. Ele enfatiza a competencia em informaçâo como prática social do bibliotecario, bem como aponta a inexpressividade, em ámbito brasileiro, das iniciativas voltadas para com a populaçâo trans e de lésbicas, gays, bissexuais e outros. Também reafirma a necessidade da participaçâo, a partir de suas práticas profissionais, no progresso político, socioeconómico, informacional e de resistencia das classes minoritárias, apontando o protagonismo social, o empoderamento, a liberdade e a emancipaçâo como fatores necessarios ao desenvolvimento pessoal, profissional e social dos individuos. Como resultados do estudo, apontam-se a urgencia da adesăo política bibliotecária frente ás minorias sociais, devendo-se focalizar e priorizar nas abordagens sociais (inclusăo, cidadania e inclusăo digital), principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil. Concluise que o papel social bibliotecário deve possibilitar vivenciar, captar e buscar suprir as necessidades de informaçâo do modo que lhe compete, ao mesmo modo em que as bibliotecas e as unidades de informaçâo contemporáneas tem de se apresentarem criativas, inovadoras e livres de preconceitos, visando o exito ao lidar com as complexidades humanas e tecnológicas.
Palavras-chave: Bibliotecário. Biblioteca. Pessoas trans. Minorias sociais. Competencia em informaçâo.
Abstract: This paper analyzes, through a literature review, the librarian's and library's social role for trans people. It emphasizes information literacy as a social practice of the librarian, as well as points out the inexpressiveness in the Brazilian context of the initiatives aimed at the trans population and also lesbian, gay, bisexual and other populations. It also reaffirms the need to participate, based on their professional practices, in the political, socioeconomic, informational and resistance progress of the minority classes, pointing to social protagonism, empowerment, freedom and emancipation as necessary factors for personal, professional and of individuals. As a result of the study, it is pointed out the urgency of political librarian adherence to social minorities, focusing on social approaches (inclusion, citizenship and digital inclusion), especially in developing countries, such as Brazil. It is concluded that the librarians social role should be able to experience, capture and seek information needs in their own way, just as libraries and contemporary information units need to be creative, innovative and free of prejudice, aiming to successful in dealing with human and technological complexities.
Keywords: Librarian. Library. Trans people. Social minorities. Information literacy.
Recebido: 06/03/2018
Aceito: 19/06/2018
1 Introduçâo
Atualmente, atravessamos uma notória mudança de paradigma oriunda da proliferaçâo dos meios de comunicaçâo e de informaçâo. A atual configuraçâo da nossa sociedade transformou a informaçâo num poderoso capital de cunho social, cultural e económico. Ao mesmo tempo, o padrăo social da contemporaneidade é predominantemente excludente e impulsiona-nos cada vez mais para o aumento das desigualdades sociais, econômicas, culturais e informacionais.
No referido contexto, as bibliotecas săo vistas como instituiçöes protagonistas da educaçâo e do livre acesso a informaçâo, contribuindo para a diminuiçâo da exclusăo social. Quanto aos bibliotecarios, um de seus desafios, na contemporaneidade, é relativo ao papel que ele deve incorporar como agente transformador em relaçâo a disseminaçâo da informaçâo em larga escala e para as mais variadas demandas (PIRES, 2012).
Seu fazer profissional torna-se diversificado, com novas rotinas incorporadas as suas funçöes. Para Cunha (2003), "Isto significa entender os novos papéis que surgem, as novas necessidades de informaçâo e as novas formas de responder a estas necessidades criando novos métodos e formas de trabalho " (CUNHA, 2003, p. 42).
Partindo dessa premissa, esta pesquisa busca contemplar a aproximaçâo do papel social do bibliotecario e das bibliotecas, com enfase nas minorías sociais, e principalmente nas pessoas trans, por meio de revisâo da literatura e breve levantamento bibliográfico, além de evidenciar a competencia em informaçâo como vertente profissional de viés social.
A terminologia trans é descrita como um "guarda-chuva" sobre aqueles que perpassam pelas expectativas binárias convencionais de identidade ou expressâo de genero. Em síntese, a pessoa transgenero é aquela cuja identidade de genero nâo corresponde ao seu sexo biológico atribuido no nascimento (PARENTS, FAMILIES, & FRIENDS OF LESBIANS AND GAYS, 2008).
É importante ressaltar que a temática e seus itens correlatos sâo aferidos por pesquisadores nâo-especialistas em questöes e experiencias transgenero vividas, levando em consideraçâo o respaldo da literatura, midiático e de conhecidos para estabelecer algumas suposiçöes acerca. O fator propulsor do estudo consiste em estender a voz reprimida de tais pessoas, e nâo representálas, pois existe uma notável lacuna de estudos, pesquisas ou relativos feitos por elas, e nâo sobre elas.
Justifica-se o estudo como parte inerente da funçâo social e transformadora do bibliotecário(a), da biblioteca e da ciencia, no apoio as pessoas trans e a populaçâo de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgeneros e demais (LGBT+1) em sua totalidade. É também dever dos profissionais da informaçâo o trabalho de reduçâo das opressöes e barreiras impostas aos grupos minoritários.
2 Pessoas trans na biblioteca: uma compreensăo necessária
Sob a acepçâo de Suess (2010), o termo trans abrange todas as pessoas que incorporaram uma identidade ou expressăo de genero diferente da designada ao nascer, incluindo nesse escopo pessoas transexuais, transgeneros, travestis, crossdressers, năo generos, multigeneros, de genero fluido, genero queer e outras autodenominaçöes relacionadas.
Tal definiçâo reafirma a condiçâo de termo "guarda-chuva", devido a sua grande abrangencia e diversidade, assim como se observa a importancia da autopercepçâo na identidade social dessa populaçâo. A identidade social é um autoconceito definido pelos seres a partir das características dos grupos nos quais estăo inseridos, sendo que cada pessoa possivelmente se associa em determinados grupos sociais (SUESS, 2010).
No caso das identidades trans, tal grupo compreende a presença de corpos travestis, transexuais e outros que destoam da dicotomia homem/masculino e mulher/feminino; se apresentando em grupos de pertença considerados desviantes, anormais, excéntricos, fazendo parte de
[...] conjuntura populacional em vulnerabilidade social e económica, devido ao preconceito que se constitui em torno destes sujeitos; assim como integram o grupo social de pessoas que, para terem acesso as transformaçöes corporais que tanto reivindicam como condiçâo indispensável para vivenciar a sua sexualidade e sua identidade, se submetem a tratamentos hormonais e a cirurgia de redesignaçâo ou readequaçâo genital. (SILVA; CERQUEIRASANTOS, 2014, p. 31-32).
Entretanto, apesar de integrarem tais conjunturas sociais, outro conceito que é necessário ser salientado para a compreensăo da identidade social trans é o de identidade de genero, relacionada ao autoreconhecimento que o individuo possui de si mesmo, diante dos padrees de genero instituidos por instituiçöes sočiais. Tais indivíduos colocam em questăo práticas sočiais impostas nestes corpos como "estrategias de poder que supervalorizam a identidade masculina, branca e heterossexual, enquanto identidade sólida e referencia confiável em detrimento do feminino." (SILVA; CERQUEIRA-SANTOS, 2014, p. 31-32).
É notório que desde os primórdios da humanidade, estamos acostumados a categorizar o que existe ao nosso redor. Pessoas, objetos, cores, enfim: interpretamos o mundo como um lugar pasteurizado, com vistas a torná-lo mais "palpável" ou menos complexo.
Para a populaçâo trans, em geral, lidar com o estereótipo de genero, o estigma e o preconceito como sujeito divergente em relaçâo a sua identidade converte-se no enfrentamento em situaçöes cotidianas, consequencia também da ausencia de suporte/apoio social externo. Logo, as individualidades trans săo consideradas "anormais" e, assim, suas identidades săo alvo de estigmas, preconceitos e violencias pelo fato de reivindicarem o direito ao reconhecimento enquanto mulheres (trans femininas), homens (trans masculinos) ou ainda como ageneros (genderless, năo binário) e genero fluido. (SILVA; CERQUEIRASANTOS, 2014).
Na contemporaneidade, as ressignificaçöes sociais, politicas e económicas estăo ocasionando quebras de paradigma comportamentais, modificando as relaçöes sociais em micro e macro esfera. Visto que essas mudanças, por vezes, săo imperceptiveis aos envolvidos nessa dinámica, há ocasionalmente beneficios e maleficios. (FARIAS; COSTA, 2017, p. 2).
E mais: as mudanças continuas fomentam possiveis conquistas de novas formas de poder, em que o "dominio" cognitivo torna-se incentivador e mediador na transformaçăo de realidades sociais, direcionando, por exemplo, o acesso e o uso da informaçăo de forma consciente, impulsionando os individuos "[...] a conquista de seu espaço social, retirando-os da categoria de meros espectadores da realidade dos fatos." (FARIAS; COSTA, 2017, p. 2).
Uma vez que o padrăo social da atualidade é predominantemente excludente e cada vez mais se proliferam as desigualdades sociais, económicas, culturáis e informacionais, as bibliotecas e unidades de informaçâo săo vistas como instituiçöes protagonistas da educaçâo e do livre acesso a informaçâo, contribuindo para a diminuiçâo da exclusâo social (ORGANIZAÇÂO DAS NAÇÖES UNIDAS PARA A EDUCAÇÂO, A CIENCIA E A CULTURA, 2016).
O apoio cognitivo - e outros - as pessoas trans, em especial na infancia e na adolescencia, é basilar para prevenir situaçöes de vulnerabilidade e risco, especialmente na desconstruçâo dos estigmas sociais e no auxilio colaborativo de projetos de vida, em um cenário no qual a emancipaçâo, o respeito a individualidade e os direitos sociais possam ser restaurados na vivencia. (SILVA; BEZERRA, QUEIROZ, 2015).
De acordo com Amendola, Oliveira e Alvarenga (2011), o apoio social apresenta-se como processo empático, o qual diz respeito a toda e qualquer informaçâo ou auxilio vindo de terceiros, principalmente das pessoas ou grupos com os quais existe contato regular, produzindo efeito positivo para ambas as partes. Refere-se também ao apoio externo para receber amparo material, emocional ou afetivo em circunstancias difíceis, bem como para se sentir valorizado nos grupos sociais nos quais está inserido (COSTA; DELL'AGLIO, 2009).
O apoio pode ser categorizado como emocional e afetivo - referente a qualidade e a sustentaçâo dos laços, constatado nas manifestaçöes de amor, de afeto e de confiança; informacional e instrumental ou material - decorrente da troca de informaçöes e de ajuda na soluçâo de problemas cotidianos e doenças, por exemplo; e como forma de interaçöes positivas - na participaçâo em açöes de prazer e do bem-estar alheio (COSTA; DELL'AGLIO, 2009).
A apartaçâo de apoio informacional, instrumental e/ou material também pode ser compreendida como pobreza na dimensâo de informaçâo e comunicaçâo. Barja e Gigler (2006) discutem que essa linha de pobreza implica na capacidade básica para ser considerado membro efetivo da sociedade atual, a qual contém tres componentes: ativos, informaçâo e comunicaçâo.
Nao obstante, as pessoas necessitam usufruir de um conjunto mínimo de ativos relacionados as tecnologías, saúde básica, educaçao, apoio social e capacidade produtiva para se exercer a cidadania. Devem ser aptos para trocar, receber e fornecer informaçöes básicas sobre o mundo que lhes cerca e para comunicar-se por meio da análise dessas, seja sobre assuntos cotidianos, políticos, económicos e outros (BARJA; GIGLER, 2006).
Muitas redes de apoio social/organizaçöes de pessoas trans surgem a partir de contatos estabelecidos em locais de prostituiçao. Várias das atuais lideranças do movimento dessa populaçao já gozavam de legitimidade e confiança por parte de outras semelhantes antes mesmo de comporem algum tipo de organizaçao formal. Essa posiçao de liderança constituiu-se em funçao do papel que elas assumiram em uma rede de apoio social formada para lidar com problemas cotidianos, como o acesso a serviços de saúde e outros (CARVALHO; CARRARA, 2013).
Alçadas as margens da sociedade, as pessoas trans muitas vezes veem na prostituiçao a única opçao de sobrevivencia e de rede de apoio social, que, consequentemente, é a porta de entrada para vulnerabilidades - seja em forma de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), violencia física ou outras adversidades, constituindo-se como um reflexo da transfobia2 (NOGUEIRA; AQUINO; CABRAL, 2017).
Apreendendo a concepçâo de "redes sočiais" de Green (2000) como o acolhimento dos vulneráveis e marginalizados, a participaçao nas redes sociais de apoio é vital para o acolhimento e respeito externo e para florescer o sentimento de pertença e de direito ao seu lugar na sociedade; além da sensaçao de empoderamento frente aos ativos opressores persistentes em dificultar a realizaçao de vontades pessoais (PERES, 2009).
No contexto da biblioteca como rede de apoio social, a Declaraçao de Direitos da Biblioteca (2008) da American Library Association (ALA), referente ao título Acesso a recursos e serviços da biblioteca independentemente do sexo, identidade de genero, expressăo de genero ou orientaçao sexual apresenta diretrizes específicas as questöes de genero. Para a ALA, as bibliotecas e os bibliotecários devem ser veementemente contra os principios opressores de materials sobre qualquer tópico, incluindo sexo, identidade de genero, expressăo de genero ou orientaçâo sexual.
A declaraçâo da entăo presidente da ALA, Julie Todaro, em oposiçâo ao descaso do governo norte-americano de Donald Trump com a populaçâo trans nas escolas, atesta a premissa de solidariedade e missăo social da instituiçâo as questöes inerentes:
A decisäo da administraçâo Trump de revogar proteçöes importantes para os estudantes transgeneros näo pode entrar em conflito com os valores fundamentais da comunidade bibliotecária e os principios sobre os quais as bibliotecas säo fundadas. Os estudantes transgeneros detem o direito de utilizar o banheiro que esteja alinhado com sua identidade de genero. [...] A ALA, seus membros, todos os bibliotecários e profissionais da biblioteca estäo empenhados na diversidade, inclusäo e respeito mútuo para todos os seres humanos, e trabalharemos incansavelmente para assegurar a representaçâo total de todos os membros da sociedade. A ALA fornece banheiros neutros em suas conferencias, e a instituiçâo näo realizará suas grandes reuniöes em estados em que cotas de banheiro foram aprovadas. Estamos de acordo com nossos membros transgeneros, colegas, familias e amigos, e apoiamos plenamente o trabalho da nossa mesa redonda de gays, lésbicas, bissexuais e transgeneros (GLBTRT), cujos membros continuam a liderar a luta para abolir a intolerancia para toda a sociedade. A ALA trabalhará em estreita colaboraçâo com todos os seus parceiros para a reintegraçâo destas proteçöes, o mais rápido possivel. (AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION, 2017, doc. näo paginado, traduçâo nossa).
Nessa significaçâo, as bibliotecas tem a responsabilidade de apoiar as diretrizes especificas sobre pessoas trans e demais expressöes de genero. Elas estäo intimamente ligadas ao ensino e ao desenvolvimento cognitivo e é importante que sejam e forneçam um espaço seguro aberto a todos. Isso vai além de designar um único banheiro como neutro de genero - o que só mantém a questäo como separada, mas igual. Trata-se da questäo de direitos civis, e as bibliotecas devem estar na vanguarda para fazer mudanças positivas acontecerem (PYATETSKY, 2016).
Como Miller (2016) articula, "As vozes unidas das bibliotecas säo um testemunho de até onde chegamos para instaurar uma política positiva e inclusiva para apoiar a ampla diversidade de experiencia humana entre nós. " (MILLER, 2016, doc. năo paginado, traduçâo nossa). Devemos fazer da "sociedade livre" que afirmamos ter uma realidade para os socialmente marginalizados (MILLER, 2016).
Para Martin Garnar, bibliotecário, professor e atual presidente da Freedom to Read Foundation (organizaçâo afiliada a ALA), em entrevista a Crum (2017), promover um espaço acolhedor para os usuarios trans da biblioteca é uma de suas principais responsabilidades. É importante encontrar esse tipo de experiencia de boas-vindas, o que năo inclui apenas ter livros e outros materiais que representem a amplitude da experiencia trans, mas também oferecer toda a gama de serviços de biblioteca para essa populaçâo. Pode ser tăo simples quanto colocar seus pronomes de tratamento em seu registro ou em sua assinatura de e-mail (CRUM, 2017).
Nessa significaçâo, as bibliotecas săo conhecidas há tempos como o lugar em que todos devem ser bem-vindos e que tópico algum deve ser censurado, sendo a biblioteca o "lugar perfeito" para sediar discussöes sobre tópicos de abordagem complexa. Outrossim, é importante modelar o tipo de diálogo civil equitativo que se busca na sociedade, e as pessoas precisam de oportunidades para aprender a se relacionar com as diferenças existentes, de forma a encontrar pontos em comum e fomentar a empatia (CRUM, 2017).
Para pessoas que se autoidentificam como trans, ou qualquer outro tipo de identidade social que possua propensäo ao estigma ou violencia, a questăo acerca da divulgaçâo de informaçöes sobre si mesmo é delicada. Quando dados identitários săo compartilhadas - podendo resultar em discriminaçâo, assédio ou violencia -, há um grau de expos^ăo indevido e danoso (THOMPSON, 2016).
Assim, é antiético que esse tipo de dados seja compartilhado por terceiros, a menos que se tenha certeza de que a pessoa em questăo tenha divulgado tal explicaçăo publicamente, com a inte^ăo de que outras pessoas soubessem; caso contrario, se a informaçăo foi compartilhada de maneira privada, deve-se divulgá-la somente com consentimento explícito, isto é, de forma ética (THOMPSON, 2016).
A divulgaçăo e/ou a capacidade de uma pessoa trans permitir a expos^ăo da sua identidade é deveras importante; o que faz da biblioteca e do seu quadro de funcionarios, em totalidade, aptos para estabelecer alianças em prol de populaçöes oprimidas, discriminadas e, de muitas formas, violentadas como resultado da percepçâo de outras pessoas sobre suas identidades e, em particular, identidades de genero (THOMPSON, 2016).
3 A competencia em informaçâo como prática social do bibliotecario
Vista como atributo profissional do bibliotecário para a "emancipaçâo" cognitiva do individuo na sociedade, ter competencia em informaçâo significa desenvolver habilidades para auxiliar o individuo a assimilar a informaçâo e exercer seus atributos como cidadâo. Assim, a discussâo sobre o desenvolvimento da competencia em informaçâo, no ámbito da vulnerabilidade social e das minorías sociais, é necessaria para o suprimento das necessidades de informaçâo (BAYLÄO, 2001).
O processo de desenvolvimento da competencia em informaçâo na sociedade envolve, entre outras habilidades, assimilar as continuas mudanças tecnológicas. Nâo se limita apenas ao uso das tecnologias disponiveis, mas vai além e envolve práticas de informaçâo que influenciam os campos pessoal, social e profissional (BRUCE, 2002).
A competencia em informaçâo é parte do processo educacional e, portanto, um dos direitos do ser humano. Em contrapartida, a cobertura dos programas governamentais e nâo-governamentais continua sendo, em geral, limitada as necessidades e a demanda efetiva, marginalizando as populaçöes rurais, indigenas, afrodescendentes, migrantes, de pessoas com necessidades especiais e privadas de liberdade, mantendo e aumentando a exclusâo, ao invés de reduzi-la (ORGANIZAÇÂO DAS NAÇÖES UNIDAS PARA A EDUCAÇÂO, A CIENCIA E A CULTURA, 2009).
No contexto brasileiro, ainda há poucos estudos sobre o desenvolvimento da competencia em informaçâo voltado as pessoas trans e a populaçâo LGBT+. Para Belluzzo (2018), as temáticas "Competencia em Informaçâo e Inclusâo social e digital", "Competencia em Informaçâo e Cidadania e aprendizado ao longo da vida" e "Competencia em Informaçâo e diferentes grupos/comunidades" demonstram alguma preocupaçâo, - ainda que embrionaria - com focos de atençâo considerados basilares e que envolvem as principais linhas de açâo da competencia em informaçâo.
No entanto, tais temas mereciam maior interesse da área e dos seus profissionais, uma vez que apresentam uma trajetória histórica que possibilitou constatar que a noçâo de competencia em informaçâo sofreu alteraçöes ao longo do tempo, em conformidade com as questöes sociais. As possibilidades de aplicaçâo da competencia em informaçâo nâo devem se restringir a programas de ensino, tampouco a atividades e espaços profissionais; é preciso perpassar a visâo da simples elaboraçâo de material instrucional e de apoio ao manuseio das tecnologías para a aprendizagem; pressupöe-se focalizar em abordagens sociais (inclusâo, cidadania e inclusâo digital), principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil (BELLUZZO, 2018).
Quanto as produçöes academicas/programas brasileiros, tais temáticas ainda sâo igualmente irrisórias, conforme infere Belluzzo (2018), situaçâo constatada também pelo breve levantamento bibliográfico realizado na Biblioteca Eletrônica Scielo, na Base de Dados em Ciencia da informaçâo (BRAPCI) e no Google Scholar para esta pesquisa. Por conseguinte, essa lacuna assegura a necessidade de maiores estudos e pesquisas que possam consolidar as referidas áreas no contexto brasileiro, considerando a sua influencia no acesso e uso da informaçâo mediante mídias e tecnologias inovadoras.
Os impactos e beneficios tecnológicos na vida contemporánea sâo incontestáveis; porém, é sabido que grande parte da populaçâo ainda se encontra a margem da utilizaçâo consciente e plena desses recursos, necessitando de mediaçâo adequada devido a complexidade das novas habilidades, além da existencia de políticas públicas que possam garantir a informaçâo para todas as pessoas (BELLUZO, 2018).
Apesar disso, paulatinamente alguns esforços estâo sendo empreendidos: o projeto de extensâo em andamento intitulado "Competencia em informaçâo da populaçâo LGBT+, por meio das dimensöes técnica, estética, ética e política" é um deles. Coordenado pela professora Elizete Vieira Vitorino (líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Competencia em informaçâo - GPCIn) e contando com a participaçao de um doutorando e dois graduandos (um destes últimos é uma mulher trans), o referido projeto foi aprovado pela Pró Reitoria de Extensăo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2017 e a sua execuçâo dá-se em parceria com a Associaçâo em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (ADEH) (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2018).
Os objetivos dessa extensăo almejam desenvolver a competencia em informaçâo da popu^ăo LGBT+ da Grande Florianópolis por meio das dimensöes técnica, estética, ética e política. Além disso, pretendem, em específico:
a) identificar as necessidades de informaçăo da popu^ăo LGBT+ com vínculo na ADEH;
b) compilar fontes de informaçăo, com foco nas necessidades de informaçăo da popu^ăo LGBT+ com vínculo na ADEH;
c) realizar oficinas sobre o uso das fontes de informaçăo selecionadas para a popu^ăo LGBT+ com vínculo na ADEH, com base nas dimensöes técnica, estética, ética e política;
d) analisar a competencia em informaçăo desenvolvida pela popu^ăo LGBT+ com vínculo na ADEH, com base no modelo de Information Search Process (ISP), de Carol Kuhlthau.
Acredita-se que a tríade ensino-pesquisa-extensăo se debruça na efetivaçăo da cidadania: o reconhecimento da sociedade como plural e diversa, estendendo as teorias democráticas tradicionais e possibilidades de viabilizar meios para a inclusăo social. Destarte, a aprendizagem ao longo da vida, pressuposto básico da competencia em informaçăo, manifesta-se como continuidade nas redes de apoio as minorías. (COACCI, 2015).
4 O papel social do bibliotecário
Se em priscas eras a missăo do bibliotecário era a de guardiăo do livro, nos tempos atuais seu fazer profissional dirige-se a mudanças cada vez mais rápidas. Em conformidade com Cunha (2003), a profissăo de bibliotecário é uma profissăo de ámago social, de mediaçâo e de contato, na qual as atividades săo realizadas com o outro e para o outro.
Segundo Almeida Júnior (1997), "[...] a nossa verdadeira funçâo social [...] năo é apenas incentivar a leitura, mas trabalhar com a informaçâo, levá-la aqueles que dela necessitam [...]" (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 91). O Código de Ética da International Federation of Library Associations and Institutions (INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATIONS AND INSTITUTIONS, 2012) para bibliotecários e outros profissionais da informaçâo corrobora tal entendimento quando define a Biblioteconomia como atividade ética de alto valor agregado ao fazer profissional com informaçöes.
O papel das bibliotecas e bibliotecários, na contemporaneidade, é apoiar e aperfeiçoar o registro e a representaçâo da informaçâo e subsidiar o seu acesso. Os serviços informacionais de interesse social, cultural e de bem-estar económico dizem respeito a responsabilidade social do bibliotecário (INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATIONS AND INSTITUTIONS, 2012).
Mais especificamente a Seçâo 2 do referido código, Responsabilidades para com os indivíduos e para a sociedade, trata sobre o viés social da profissâo, discorrendo sobre a premencia do papel do bibliotecário e demais profissionais da informaçâo ao impedimento da restriçâo da informaçâo, assim como sobre os serviços prestados, que devem ser fornecidos para qualquer pessoa de qualquer faixa etária, nacionalidade, crença política, condiçâo física ou mental, genero, descendencia, educaçâo, renda, raça, religiâo, orientaçâo sexual, entre outras particularidades (INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATIONS AND INSTITUTIONS, 2012).
Na sociedade contemporánea, há certa relaçâo paradoxal entre o excesso de informaçâo e o grande número de "[...] pessoas desinformadas, nâo pela opçâo de nâo quererem fazer parte desse processo, mas porque se veem privadas do direito de participaçâo." (JESUS, 2007, p. 3). A informaçâo, para muitos, só é acessível se for gratuita e se oriunda de meios - sociais, políticos, físicos - aproximativos das pessoas (GUEDES, 2011).
Sendo assim, cabe refletir como o bibliotecario pode efetivar seu apoio aos movimentos sočiais - principalmente as comunidades vulneráveis. Ser ou estar vulnerável significa, de certa forma, ter dificuldade de acesso a informaçâo. Na sociedade atual, o senso crítico é fundamental para filtrar informaçöes necessarias para o cotidiano. Produzir informaçâo para disseminála é reconhecido como ato de inclusăo social (DZIEKANIAK; ROVER, 2011) e compreender o mundo social e seus contextos faz parte da formaçao do homem.
De acordo com Silva (2011), "o individuo está ligado a outros por um fenómeno de dependencia recíproca, de interdependencia." (SILVA, 2011, p. 120), cuja assimilaçao consiste em entender seu espaço como pessoa e professional, suas individualidades, subjetividades e as influencias territoriais, sociais e informacionais presentes ao seu redor (MORIGI; SILVA, 2005).
Almeida Júnior (1997) aponta que a prática professional bibliotecária parte do pressuposto de que todos sao absolutamente iguais, para todos sao oferecidas oportunidades semelhantes e todos os "usuários" săo padronizados. É notoria a inverdade deste apontamento, visto, pela experiencia, que as "pessoas nao sao tao iguais como imaginamos" (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 100), e as oportunidades oferecidas para tais, seja na educaçao, na cultura, sao variantes e discrepantes.
Neste panorama, Cury, Ribeiro e Oliveira (2001) afirmam que "o trabalho com as representaçöes de determinado grupo social permite aprender, pelo conhecimento dos objetos sociais, o uso que dele fazem os individuos ou grupos." (CURY; RIBEIRO; OLIVEIRA, 2001, p. 2). A biblioteca é um espaço sociável de interaçao e de comunicaçao das pessoas e ato de sociabilidade infere na produçao de conhecimento e na sua proliferaçao (MORIGI; SILVA, 2005).
Outro ponto de vista relativo a sociabilidade e ao trabalho com os grupos sociais diversos dá-se na participaçao política do bibliotecário. Sabe-se que uma grande parcela da sociedade desconhece seus direitos e, portanto, prossegue enraizada no lugar-comum da ignorancia, da subalternidade (ALMEIDA JÚNIOR, 1997).
Por esse ángulo, Almeida Júnior (1997, p. 91) questiona: "[...] e o bibliotecário, onde entra nisso tudo?" e segue sua reflexăo, inferindo que grande parte da classe bibliotecária acredita ser destituida de responsabilidade política, năo tendo direito e/ou propriedade para interferir nesse contexto, visto que a relaçâo política condiz apenas "entre o povo e os políticos" (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 91).
É justamente em detrimento dessa mentalidade que a "[...] populaçâo năo nos reconhece como úteis socialmente [...]." (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 91): pelo fato da classe bibliotecária năo reconhecer o papel social que é trabalhar com a informaçăo, disseminá-la aos que necessitam e, por meio dela, permitir que a popu^ăo conheça seus direitos, tenha como reivindicá-los e detenha a consciencia social e política capaz de transformar toda a conjuntura sóciopolitica predominante (ALMEIDA JÚNIOR, 1997).
A popu^ăo, logo, năo reconhece a referida classe como socialmente útil, porque praticamente nada de significativo está sendo feito por ela. Serve-se aos interesses da minoria privilegiada que monopoliza o poder - os ditos opressores, que năo querem a proliferaçăo das informaçöes e do conhecimento as massas. Ao trabalhar única e exclusivamente com os alfabetizados, colaborase com os que puderam estudar e amplia-se a diferenc^ăo entre eles e os que a sociedade, por alguma circunstancia, năo permitiu que tivessem acesso ao conhecimento, a informaçăo (ALMEIDA JÚNIOR, 1997).
O bibliotecário, como já dissemos, näo é apolítico, neutro, imparcial. Como pode o bibliotecário se considerar imparcial se os materials do seu acervo säo parciais? Como pode o bibliotecário se considerar imparcial se a própria locaИzaçäo da biblioteca onde trabalha serviu a interesses políticos e que năo exprimem a real necessidade da comunidade? Como pode o bibliotecário se considerar imparcial se aqueles que mais necessitam da biblioteca estăo impossibilitados de fazer uso dela? (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 92).
A função política do bibliotecário consiste, de modo semelhante, na premencia da atuaçäo voltada as populaçöes vulneráveis, carentes de informaçöes, para quem uma postura "[...] apática, passiva e reacionária [...]" (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 92) do profissional e institucional será conivente com o partidário dominante.
Năo basta espalharmos bibliotecas em cada quarteirăo, em cada esquina. É preciso que o bibliotecário que atuar nessas bibliotecas seja um outro bibliotecário; é preciso que ele esteja consciente de sua real funçâo social; é preciso que ele saiba que o seu trabalho pode e deve alterar pensamentos e comportamentos; é preciso que ele vá até a populaçâo, que ele procure o povo, que ele trabalhe com a comunidade. (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 92).
É importante que o fazer profissional/político do bibliotecário seja também direcionado a conscientizaçâo do papel do cidadăo na resoluçâo qualitativa de situaçöes cotidianas. A partir de tal fazer, pode-se desenvolver o empoderamento individual, para que as açöes realizadas sejam conduzidas pelo agir e pensar, indo além do gerenciamento de conflitos que se apresentam em variados contextos. Através do empoderamento individual, adquire-se o poder de escolher quais açöes serăo úteis para que se consiga tomar decisöes baseadas em vivencias anteriores e de que forma as açöes futuras podem beneficiar os outros (FARIAS; COSTA, 2017).
Coindicente a isto, Garrafa (2005) discorre acerca de tres instancias recorrentes da bioética que podem ser aplicadas na presente discussăo: empoderamento, libertaçâo e emancipaçâo.
De traduçâo livre e direta do ingles, empoderamento (empowerment) encontra-se com a noçâo de liberdade, na qual a sociedade deve apresentar uma postura de cumplicidade robusta e, desse modo, será possível erradicar a fome, a pobreza e as demais formas de iniquidade; o entendimento de empoderamento dos individuais - vulnerabilizados em virtude do processo histórico e de características culturais das sociedades em que se encontram - perpassa o todo social, atuando como elemento ativo no poder de decisăo e propiciando sua inserçâo coletiva. O empoderamento estaria, assim, sedimentado na articulaçâo inerente entre os diferentes grupos e segmentos (GARRAFA, 2005).
Esse processo é o que transfigura um mero aglomerado de seres em uma sociedade, conforme a visăo de Durkheim (2007):
A sociedade näo é simples soma de individuos, e sim sistema formado pela associaçâo, que representa uma realidade específica com seus caracteres próprios. Sem dúvida, nada se pode produzir de coletivo se consciencias particulares näo existem; mas esta condiçâo necessária näo é suficiente. É preciso ainda que as consciencias estejam associadas, combinadas, e combinadas de determinada maneira; é desta combinaçâo que resulta a vida social e, por conseguinte, é esta combinaçâo que a explica. Agregando-se, penetrando-se, fundindo-se, as almas individuais däo nascimento a um ser, psíquico se quisermos, mas que constitui individualidade psíquica de novo genero. (DURKHEIM, 2007, p. 96).
Sob a ótica de Garrafa (2005), o que confere humanidade aos seres biologicamente identificados como humanos decorre de um processo coletivo, que se alimenta diretamente da produçao e reproduçao correntes dos significados atribuidos as práticas sociais. A açao social politicamente compromissada é aquela capaz de transformar a práxis pública.
Na Bioética de Intervençao, aponta-se o corpo como indicador para a intervençao ética. Identifica-se e incorpora-se a dimensăo coletiva e o entendimento da pessoa como uma totalidade somática, na qual estăo articuladas as dimensöes física e psíquica, apresentando-se, de modo integrado, nas interrelaçöes sociais e nas relaçöes com o meio (GARRAFA, 2005).
Assim, o contexto de empoderamento estabelece a ponte entre as pessoas, cuja corporeidade ratifica o processo de produçao e reproduçao social, e a coletividade da qual elas sao originárias. É explicitada a relaçao dialética entre reflexao e açao na incumbencia singular e coletiva, dado o impacto que as escolhas das pessoas produzem na realidade A ideia de empoderamento, portanto, liga-se a noçao de que as escolhas pessoais nao podem ser julgadas com olhares miopes e estereotipados de autonomia (GARRAFA, 2005).
Se a desigualdade emerge no meio social, mediante as individualidades, ofuscá-la consiste em reconhecer a relaçao evidente entre autonomia e responsabilidade. A autonomia trata-se da devolutiva mútua "[...] aos desejos, necessidades e vontades da pessoa, como também no reconhecimento da interconexao entre os seres humanos e todas as formas de vida, assim como na responsabilidade existencial exigida frente a elas." (GARRAFA, 2005, p. 128).
A concepçao de libertaçao encontra-se diretamente com o empoderamento. Conforme Garrafa (2005), utilizando como base a linha de raciocinio de Paulo Freire, nesse ponto é identificada a oposiçao entre o cativeiro - ou a privaçao do direito de escolha - e a libertaçao - o exercicio verídico da autonomia. As pessoas, incumbidas de seus papéis como atores políticos, podem fazer com que suas açöes tanto estabilizem como transmutem o status quo.
Libertaçao, no paradigma da inclusăo social, denota posiçao de poder e possibilita a tomada de posiçâo nesse jogo de forças. A libertaçâo direciona a conduçâo da luta política para assegurar tal liberdade, e sua adesăo manifesta a luta dos cidadăos que almejam ser e sentir-se socialmente incluidos em quaisquer contextos, a partir da consciencia sobre as forças externas que os impedem e da açao concreta de resistencia a elas (GARRAFA, 2005).
Ter consciencia da realidade, conforme Freire (1979) reflete, é distanciar-se dela; possivelmente, é saber observar os fenómenos ocorrentes em ótica macro. Desse modo, mostra-se a conscientizaçao e a realidade que vai além do pao e circo. O despertar para a conscientizaçao leva-nos a terceira instancia discorrida por Garrafa (2005): a emancipaçao. Emancipado é unicamente aquele que suprimiu sua dependencia, que alcançou o seu domínio próprio e pode sustentar nao somente a sobrevivencia, mas garantir suas escolhas mediante o alcance desta. Portanto, uma pessoa emancipada é uma pessoa livre (GARRAFA, 2005).
A emancipaçao exprime alforria, independencia, liberdade: o caminhar que se inicia com a libertaçâo. O poder sobre si mesmo é o que defere a emancipaçao, tornando a pessoa imune as forças opressoras. Extinguir a dependencia é pré-requisito para a emancipaçao, valendo tanto para a pessoa quanto para o Estado. É nessa apreensâo que a emancipaçao se torna um poderoso mecanismo (competencia) para orientar a luta pela libertaçao e para colocá-la na dimensao coletiva (GARRAFA, 2005).
Garrafa (2005) acredita que qualquer uma das tres instancias, - empoderamento, libertaçao e emancipaçao - apesar de sentidos diferentes, sustentam o discernimento do fenómeno de inclusao social como um processo dinámico que precisa ser edificado e levado a execuçao efetiva, objetivando a conquista da verdadeira justiça social para as pessoas.
Nao obstante, é possível relacionar o empoderamento individual ao predomínio social da informaçao e do papel social do bibliotecário como motriz norteador. O poder social é visto como a relaçao entre dois agentes, sendo o agente principal o detentor do poder, e o secundário, o que é afetado por esse poder. O poder também é entendido como a capacidade de influencia, e as relaçöes de poder na sociedade representam uma mudança no pensamento sobre a competencia em informaçâo (COPE, 2010).
De algum modo, quando questöes sociais săo dadas pela interaçâo, constituem-se novos caminhos para a efetivaçâo do papel coletivo, realizando a inclusăo e, consequentemente, o protagonismo social. Farias (2015) expöe que essa faceta do protagonismo faz do ser alguém pleno, assim como o possibilita agir nos processos decisorios, seja no consumo, na produçâo, na mediaçâo ou em outras práticas sociais.
O protagonismo social faz da pessoa a principal transformadora de sua própria realidade, exercendo influencia direta nas tomadas de decisöes individuais ou coletivas. Aquele que é protagonista, entăo, também dá a sua própria realidade um novo significado (FARIAS; COSTA, 2017).
O protagonismo social está relacionado ao ato de empoderar, que é transformar a si mesmo e aos outros em protagonistas, é sair de uma condiçâo de sujeiçâo, é livrar-se do fardo de estar sujeito a uma subjetividade imposta que dita quem voce é e como deve agir, é um processo criativo pelo qual pessoas e coletividades ampliam seu campo de açâo [...]. (ASSOCIAÇÂO BRASILEIRA DE ENFERMAGEM, 2014, p. 16, grifo nosso).
Sendo o protagonista o ser consciente de sua funçâo social e de sua capacidade de mudança da sociedade, ele busca instigar a capacidade de resolver conflitos e desafíos cotidianos nos seus semelhantes. É o que pode acontecer com o bibliotecário - especialmente quando se trata do seu papel social - ao deparar-se com situaçöes que exijam habilidades interpessoais e técnicas (FARIAS; COSTA, 2017).
O bibliotecário, ao empoderar-se dos processos que envolvem suas rotinas profissionais, torna-se assertivo: fornece auxilio conciso as demandas, aponta soluçöes que viabilizam a participaçâo na sociedade de forma mais critica e ativa, motiva a desconstruçâo dos papéis coadjuvantes de situaçöes cotidianas. A atuaçâo/intervençâo do bibliotecário junto as demandas torna-o, por consequencia, protagonista social (FARIAS; COSTA, 2017).
Consoante a isso, Almeida Júnior (1997) ressalta:
Nós precisamos de uma Biblioteconomia subversiva. Nós precisamos de uma Biblioteconomia guerrilheira, que subverta a ordem das atuais prioridades; que procure, busque, constantemente, os interesses populares, que esteja voltada para os oprimidos. [...] E os bibliotecários querem que esses indivíduos procurem a biblioteca. [...] A biblioteconomia está precisando de uma "teologia da libertaçâo". Talvez, com ela, os bibliotecários passem a se interessar mais pelo povo, pelos carentes de informaçâo, nāo de uma forma assistencialista, mas como um dever, uma obrigaçâo social da profissāo. (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 92-93).
Como "obrigaçâo social" da profissāo, deve-se trabalhar para fazer da biblioteca, em quaisquer instancias, instituiçâo aconchegante e segura. A possibilidade de criaçâo de banheiros neutros em termos de genero, do sigilo quanto aos dados cadastrais na instituiçâo - ou até mesmo a opçâo de nāoidentificaçâo de genero - e a garantia de que todos os frequentadores da biblioteca serāo tratados com decoro constituem funçöes sociais. Sempre que as necessidades da populaçâo trans forem avaliadas e identificadas, é substancial a inclusāo de toda a populaçâo durante o processo (ALMEIDA JÚNIOR, 1997; AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION, 2015).
Fundamentando-se na premissa da informaçâo como alicerce do desenvolvimento cognitivo e social, e do(s) bibliotecário(s) como protagonista(s), constitui-se papel significativo na sociedade contemporánea. Logo, somente a pessoa trans tem discernimento e entendimento concreto de como é a vida trans e quais sāo as implicaçöes de (sobre)viver sua existencia (THOMPSON, 2012).
Dito isto, o papel social do bibliotecário é contemplado além de suas práticas tradicionais, revelando-se interventor na resistencia ou interventor na mediaçâo de espaços físicos, serviço de referencia, aquisiçâo de materiais, etc. Ao colaborar para a edificaçâo dos direitos civis da populaçâo trans - de ser reconhecida e respeitada como se identifica -, esse apoio torna-se incondicional (THOMPSON, 2012).
A consciencia de tornar a classe bibliotecária sensível nāo apenas a orientaçâo sexual, mas também as questöes de identidade de genero também faz parte da missāo social. A realizaçâo de capacitaçöes ou workshops nas instituiçöes faz-se necessária, principalmente ao lidar com questöes íntimas e singulares, como, por exemplo, o uso dos devidos pronomes (THOMPSON, 2012).
Nesse prisma, os serviços tradicionais da biblioteca, ao adequarem-se a realidade da populaçao em pauta - seja nos serviços de referencia presenciais e virtuais, na Disseminaçao Seletiva da Informaçao (DSI), nos estudos de usuarios, no desenvolvimento de coleçöes, marketing e recursos virtuais -, tornam-se mecanismos potenciais na satisfaçao da demanda (THOMPSON, 2012).
Adequar o fazer profissional aos interesses das demandas - e das demandas potenciais - é o que deve se manter em voga. É preciso que o trabalho feito esteja atento as mudanças da sociedade e a transformaçao em razăo dessas. É preciso questionar
[...] nossas verdades, nossos dogmas, pois só assim estaremos realmente avançando no sentido de darmos dignidade ao ser humano, o status de objetivo maior de nossos trabalhos; estaremos realmente avançando no sentido de propiciarmos condiçöes para que todos possam exercer seu papel de cidadäos, e essa ser a prioridade de nossa atuaçâo. Hoje, estamos sem objetivos claramente definidos; näo sabemos nossa funçâo na sociedade e, em consequencia, o porque de nossa existencia enquanto profissionais. Por causa disso, buscamos, mesmo sem o saber, a nossa razäo de ser dentro de nós mesmos, dentro de nossas técnicas, serviços, dentro da biblioteca. A resposta, com certeza, esta fora dos nossos pressupostos e dogmas. A resposta esta na sociedade, no usuario, no cidadäo. (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 103-104).
Compreende-se que a classe em questăo pode auxiliar na promoçao do empoderamento, da liberdade e da emancipaçao por meio das práticas sociais, a priori. Entretanto, cabe a postura profissional emergente de reflexăo social e política, em primeira instancia. A classe deve estar preparada para conciliar os conflitos e lidar com as diferenças humanas, sociais e cognitivas (FARIAS; COSTA, 2017).
Desse modo, as práticas sociais exercidas propiciam ao bibliotecário(a) a mudança de postura profissional e a busca por estratégias que possam contemplar diversas demandas, pois seu fazer profissional deve voltar-se cada vez mais ao empoderamento e ao protagonismo social na adesăo de agente/ator principal durante sua atuaçâo junto as demandas (reais e potenciais), buscando compreende-las, conquistá-las e apoiá-las em quaisquer circunstancias (FARIAS; COSTA, 2017).
5 Considerares finais
A informaçao é fator primordial no desenvolvimento humano e social, e os bibliotecários e as bibliotecas constituem papel significativo na sociedade contemporânea. Somente a pessoa trans tem discernimento concreto de como é a sua vida e quais săo as consequencias de enfrentar todo o estigma existente.
Nesse cenário é que o papel social do bibliotecário(a) entra em prática: seu fazer profissional vai além de suas práticas tecnicistas. Seu papel como mediador é indiscutível, seja em espaços físicos, serviço de referencia ou aquisiçâo de materiais no desenvolvimento da competencia em informaçâo. O aprendizado ao longo da vida propiciará o fortalecimento intelectual e, como via de măo dupla, ao mesmo tempo em que se aprende, ensina-se e vice-versa. A luta pelos direitos das pessoas trans ocorre apenas para que elas sejam reconhecidas e respeitadas da forma como se identificam, sendo esse um direito humano básico.
Para Almeida Júnior (1997, p. 108), "A razăo de ser da nossa profissăo, o papel que apenas e tăo somente ela desempenha na sociedade, năo é considerada como razăo para debates e discussöes [...]" (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 108); e, no mesmo sentido, a Biblioteconomia por vezes é vista pela sociedade e pelo profissional da área como uma "[...] matéria vazia, absolutamente oca, revestida por uma tenue e transparente casca, prestes a se romper, deixando ainda mais invisível uma profissăo que ninguém ve." (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 108).
Deve-se apreender que é fundamental a proatividade e visibilidade como virtudes profissionais para fazer do bibliotecário um "[...] agente de transformaçăo, ou seja, uma peça com capacidade para modificar, alterar a sociedade." (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 109) para atingir o protagonismo social - do profissional e da sociedade (GARRAFA, 2005; FARIAS; COSTA, 2017).
O papel social bibliotecário é, indiscutivelmente, vivenciar, captar e buscar suprir as necessidades de informaçăo do modo que lhe compete - compreender o fenómeno, pois, no mundo social, se o habitat contribui para fazer o hábito, o hábito também contribui para fazer o habitat, por meio das interaçöes sočiais e dos estímulos envoltos. A aproximaçâo de realidades distantes no mundo social viabiliza a aproximaçâo social (BOURDIEU, 2003).
Cabe a nós, profissionais, pesquisadores ou equivalentes - pessoas, antes de titulaçöes e funçöes - discernir sobre quais condutas profissionais adotar, no intuito de amenizar a falta de informaçâo e as barreiras construidas pelo preconceito e opressáo existentes. É importante ressaltar que as pessoas trans (T) tem particularidades mais densas em relaçâo ao restante da populaçâo LGB+ e, por isso, necessitam de apoio substancial.
A biblioteca e as unidades de informaçâo condizentes com a contemporaneidade devem ser criativas, inovadoras e livres de preconceitos para ter exito ao lidar com as complexidades humanas e tecnológicas (BIRANVAND; SOHEILI; KHASSEH, 2015). A quinta lei da Biblioteconomia, de Ranganathan, determina: a biblioteca é um organismo em crescimento (RANGANATHAN, 2009). Crescimento relacionado á importancia social e qualidade para aqueles que a usam e para aqueles que talvez a usarăo. Crescimento mútuo nas relaçöes institucionais/profissionais e, acima de tudo, humanas.
1 "O + representa os inúmeros outros grupos de minorías sexuais e de genero que tomariam o acrônimo muito longo para uso prático." (LGBT+, 2014, doc. näo paginado). Há controvérsias quanto ao uso, porém atesta-se que muitas ONGs e estudiosos aderiram a sigla LGBT.
2 Segundo Jesus (2012), transfobia é o "preconceito e/ou discriminaçâo em firnçâo da identidade de genero de pessoas transexuais ou travestis. Näo confundir com homofobia, [...] [que é o] [...] medo ou ódio com relaçâo a lésbicas, gays, bissexuais e, em alguns casos, a travestis, transexuais e intersexuais, fundamentado na percepçâo, correta ou näo, de que alguém vivencia uma orientaçâo sexual näo heterossexual." (JESUS, 2012, p. 29).
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Abstract
This paper analyzes, through a literature review, the librarian’s and library’s social role for trans people. It emphasizes information literacy as a social practice of the librarian, as well as points out the inexpressiveness in the Brazilian context of the initiatives aimed at the trans population and also lesbian, gay, bisexual and other populations. It also reaffirms the need to participate, based on their professional practices, in the political, socioeconomic, informational and resistance progress of the minority classes, pointing to social protagonism, empowerment, freedom and emancipation as necessary factors for personal, professional and of individuals. As a result of the study, it is pointed out the urgency of political librarian adherence to social minorities, focusing on social approaches (inclusion, citizenship and digital inclusion), especially in developing countries, such as Brazil. It is concluded that the librarians social role should be able to experience, capture and seek information needs in their own way, just as libraries and contemporary information units need to be creative, innovative and free of prejudice, aiming to successful in dealing with human and technological complexities.